7 de julho de 2009

The Hangover - A Ressaca


Ano: 2009

Realização: Todd Phillips

Argumento: Jon Lucas, Scott Moore

A comédia é um género complicado de se fazer, sobretudo no cinema. Prova disso mesmo é haver gente que não gosta de ver comédias, por desiludir a expectativa de o filme fazer alguém rir. Com efeito, o selo do género de comédia com que se publicita um filme estraga muitas vezes o espontâneo sentido de humor, que em muitos casos apenas acaba por surgir um pouco por piedade ao esforço empreendido pelos escritores, protagonistas ou realizadores.

Apesar disso, gosto de pensar que ainda existe boa comédia e sou capaz de dar muitas vezes o benefício da dúvida. Mas, verdade seja dita, há muita porcaria que se vende por aí com o nome de comédia. O que é algo triste, seja por estragar o legado de nomes anteriormente ligados ao humor de grande qualidade (duas palavras: Eddie Murphy) ou então por não mostrar absolutamente nenhuma gota de originalidade, talento ou humor (até hoje, não conheço ninguém que tenha visto os filmes “Epic Movie” ou “Uns Espartanos do Pior” e que tenha gostado).

A comédia pode, essencialmente, distinguir-se em dois tipos: a chamada comédia “non-sense”, presente em grande maioria dos sketches de várias troupes (Monty Python, Gato Fedorento, Big Train, etc) e a comédia mais realista, aquela que, sem recorrer à grandes quantidades de palermice, consegue ir buscar situações credíveis (mesmo que exageradas) ao quotidiano social. Séries de TV como “Seinfeld”, “O Escritório” ou “Coupling” são excelentes exemplos deste tipo de humor e a eles se junta o filme “A Ressaca”.

A premissa é bastante simples: um grupo de amigos, numa de lançar uma festa de despedida de solteiro a um deles que está prestes a dar o nó (na garganta), decide ir a Las Vegas e, após uma noite de copos e festa, acordam sem memória do que aconteceu na dita noite, deparando-se com o desaparecimento do amigo que em dias se irá casar. É então uma corrida contra o tempo em que os três ressacados procuram descobrir o que lhes aconteceu na noite perdida e, consequentemente, o noivo. Improvável? Não, nem por isso. Credível? Sim, bastante. Familiar? Quem sabe…

A maior-valia do filme é, sem sombra de dúvida, o argumento, o que é bastante surpreendente, considerando os trabalhos anteriores dos escritores. Não só está a trama geral muito bem construída e desenvolvida, sem quaisquer falhas (um grande feito, tendo em conta a grande quantidade de pormenores que possui), e com um tom imprevisível que caracteriza os eventos e personagens que vão surgindo a bom passo, como também os diálogos estão muito bem conseguidos, dando a cada personagem uma voz distinta e, como resultado, uma personalidade cativante. O realismo e espontaneidade das conversas entre as personagens estão muito bem conseguidos e tal evita que o humor se torne forçado. O filme não tenta ter piada, pura e simplesmente a tem e revela-a sem pressas. Tal é muito raro num argumento de comédia e, por isso mesmo, igualmente louvável.

Mas a verdade é que um argumento com piada, mesmo que seja muito bom, não é o suficiente para se conseguir uma comédia de qualidade. Para isso, é igualmente necessário um grupo de actores escolhido cuidadosa e correctamente. Ora, é exactamente esse o elenco que “A Ressaca” possui, um grupo genial de actores (ao qual não se faria nenhuma alteração), que não só dão vida às personagens e piada ao filme, mas também protagonizam na perfeição momentos de comédia física (feito nada fácil, acrescente-se), homenageando os tempos de Charlie Chaplin ou Buster Keaton, em que o humor pastelão era comum nas salas de cinema

A começar pelo trio principal (Ed Helms, Bradley Cooper e Zach Galifianakis), que mostram uma excelente química de humor entre eles e cujos entendimentos e discórdias fornecem o centro do filme. Já tinha saudades dos tempos em que Helms participava no “The Daily Show” e aqui o comediante regressa em grande forma à ribalta. E Galifianakis é um verdadeiro achado, pois consegue pegar talvez no mais caricato dos protagonistas e acrescentar uma dose extra de invulgaridade que capta a atenção de qualquer pessoa. Por sua vez Bradley Cooper, talvez o elemento menos marcante do trio, tem um papel essencial para a dinâmica do grupo e sem ele o filme estaria incompleto.

Igualmente, o elenco secundário recomenda-se vivamente. Não se cai no cliché dos personagens secundários que aparecem apenas por aparecer (a presença de Mike Tyson prova isso mesmo), assim como ninguém tenta ganhar destaques ao chamar a atenção (excepção será talvez o actor Ken Jeong, mas a personagem que ele interpreta tem um pouco esse propósito). Cada personagem tem o seu momento de brilhar e não se atropelam uns aos outros, nem mesmo nas cenas mais complexas.

Quanto à realização, esta é claramente o trunfo menor do filme, se bem que não totalmente desprovida de méritos. Todd Phillips adopta um estilo narrativo claro e conciso, tendo consciência de que a trama em geral é o mais importante e, assim, favorece muito o filme. O realizador aproveita algumas cenas para prestar homenagem a grandes clássicos do cinema contemporâneo (sendo “Rain Man – Encontro de Irmãos” o exemplo mais flagrante) assim como para ressuscitar clássicos da música dos anos 80 (a inclusão da canção “In the Air Tonight” de Phil Collins está fantástica). Por último, de destacar os créditos finais, bastante invulgares, mas que assentam perfeitamente no ambiente humorístico do filme, sendo o resultado uma conclusão mais que adequada.

De facto, o fime é uma das grandes surpresas do ano, se bem que o trailer já prometia (mas muitas vezes os trailers também enganam…). Temi o pior, que fosse uma cópia de carbono de filmes como “Meu, Onde Está o Carro?” em que a paródia ocupa o lugar principal, não deixando espaço para a história. Felizmente, tal não é o caso em “A Ressaca”, um filme de comédia com bastante piada e uma história com pés e cabeça, cujo maior feito é apresentar-nos um grupo de amigos que gostaríamos de rever em breve. Tendo isso em conta, a boa notícia é que uma sequela já foi anunciada. Pessoalmente, espero que a equipa a cargo dessa continuação faça justiça à qualidade deste filme.

4 de julho de 2009

Synecdoche, New York


Ano: 2008

Realização: Charlie Kaufman

Argumento: Charlie Kaufman

Nos dias de hoje, o cinema é movido pela escrita. Tal facto provou-se recentemente, quando o mundo do entretenimento se mostrou frágil perante uma mediática greve dos argumentistas. Com efeito, cada projecto cinematográfico tem na sua base uma série de argumentos escritos e rescritos. Porém, de entre a multidão de escritores que existe na criação cinemática, poucos são verdadeiros autores, aqueles que mostram uma voz própria e não se colam aos estereótipos populares, como adaptações de obras e biografias, remakes e sequelas de franchises já exploradas. Charlie Kaufman é um deles.

Desde o filme “O Despertar da Mente” (na minha opinião um exemplo da perfeição que um argumento de um filme pode alcançar) que estava ansioso por ver que novos trabalhos sairiam da mente do argumentista. Com efeito, de todos os filmes que contam com o nome de Kaufman nos créditos, posso dizer que nunca me desiludi com o resultado final. Este novo “Synecdoche, New York” não é excepção. Como em todo os seus trabalhos, Kaufman aborda aqui uma temática bastante criativa e interessante, uma nova perspectiva sobre a mentalidade humana e a sua relação recíproca com a arte.

A história centra-se no dramaturgo Caden Cotard que, após uma produção teatral de sucesso, procura levar o seu trabalho a uma dimensão mais épica e honesta, com o objectivo de capturar o íntimo do quotidiano e transpô-lo para o palco. Assim, decide reunir um elenco num armazém em Nova Iorque com o objectivo de recriar, à escala real, a cidade americana. Porém, à medida que o projecto se vai desenvolvendo, Caden vai-se apercebendo que, embora a sua intenção fosse criar algo único e original, o seu projecto não passa de uma réplica glorificada com a pretensão de criatividade.

O comentário aos ideais de criatividade e originalidade presentes na arte de hoje permeia todo o filme, sendo este, simultaneamente, um excelente manifesto artístico. Esta é uma história muito bem escrita que, possuindo uma densidade complexa, está recheada de pormenores fantásticos, desde o nome do protagonista referir um distúrbio psicológico que o caracteriza até à casa em chamas. É um argumento inteligente, que desafia até o espectador mais literato, pois não se perde nas palavras, mas através dela, alcança algo maior, uma ambiguidade interpretativa que fica connosco e nos obriga a pensar no filme, mesmo depois de este terminar.

Infelizmente, se o filme de facto não se perde no argumento, perde-se na realização. Kaufman, que aqui se estreia no cargo da realização, acaba então por ser em simultâneo o melhor (graças à sua escrita, única e diferente) e o pior (devido à falta de experiência por detrás da câmara) do filme. Não que o filme esteja mal realizado, a realização é competente q.b. ao narrar a história, mas Kaufman adopta um estilo parado que não cativa as audiências, tornando, por vezes, um filme que devia ser inspirador e vibrante, em algo moroso e chato. Ou seja, a exprimir as suas ideias em papel, ele é genial, mas passá-las para o grande ecrã (uma tarefa bastante árdua, diga-se de passagem…) ainda faltam bastantes degraus até chegar a uma genialidade equivalente à da sua escrita.

Igualmente, apesar de o filme conter um elenco muito talentoso, Kaufman não explora os actores da melhor maneira. O que vale é o facto de, quanto à interpretação, o filme basicamente assenta-se nos ombros de Phillip Seymour Hoffman, actor de grande calibre que aqui não desilude e pode juntar a sua participação neste filme a um curriculum já notável. Igualmente Smantha Morton e Catherine Keener encontram-se bem, se bem por vezes mostrem um pequeno desconforto com as suas personagens, revelando-se uma dinâmica interessante mas não muito cativante. Eis aqui um exemplo da falta de experiência na realização da parte de Kaufman que prejudica o filme. É de se ponderar como resultaria o filme se fosse realizado com uma inovação aliciante de Spike Jones ou com uma simplicidade mágica e sonhadora de Michel Gondry.

Esta divergência entre 'Kaufman, o escritor' e 'Kaufman, o realizador' acaba por estragar o filme (ironicamente, esta dicotomia lembra-me do filme “Inadaptado”, cujo argumento é também da sua autoria…). Apesar de tudo, “Synecdoche, New York” é bastante recomendável pela história, sendo este o filme mais bem escrito que vi este ano. Porém, a barreira morosa e pretensiosa que rodeia a realização do filme torna-o pouco acessível ao espectador casual.